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quarta-feira, 8 de abril de 2009

No Tempo das Maria Fumaças e outros Trens


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No Tempo das Maria Fumaças e Outros Trens Um pouco barulhentas, fumarentas, rapidíssimas para a época, bamboleantes, porém, encantadoramente românticas e langorosas nos seus apitos anunciando chegadas, partidas, ou avisos para incautos transeuntes que se aventurassem a cruzar o seu caminho, como animais, bêbados ou, infelizmente, distraídos e suicidas. Eram elas as donas de todo aquele pedaço estreito do seu comprido leito, do Recife a Salgueiro. Deslizando sobre centenas e centenas de quilômetros de trilhos que se inseriam, uma hora entre túneis, montanhas, morros, vales e desfiladeiros, outra hora sobre colinas, planícies ou pontes ou ainda varando matas fechadas, canaviais, capoeiras, capoeirões e caatingas ou mesmo varando ruas de cidades, arruados ou tão somente margeando um simples vagão, a título de Estação, como em Insurreição em Pernambuco. Eram elas as Maria Fumaças, primeiro da Great Western, depois Rede Ferroviária do Nordeste e na fase final - Rede Ferroviária Federal S/A. Em Pernambuco havia três itinerários: Norte, Sul e Oeste. Todos saindo da Estação Central do Recife. Ao passageiro havia três opções: Norte - Para João Pessoa e Natal, Oeste – Para as cidades da região central de Pernambuco até Salgueiro e Sul – Para Maceió, passando pelo Cabo, Escada, Estação Frexeiras, Ribeirão e Palmares. Catende Maraial e Quipapá, entre outras, no ramal de Garanhuns. Como era de praxe, havia os trens de carga para transporte de equipamentos, carga pesada e animais e os trens de passageiros, que dividia aqueles que fossem viajar nos seus vagões em pobres ou ricos. Tudo de acordo com as posses da cada um. Para os “ricos” ou remediados, havia os vagões mais confortáveis, dotados de poltronas acolchoadas e reclináveis, para frente e para trás – eram os de 1ª Classe. Para os destituídos de fortuna e menos remediados havia os vagões de 2ª Classe com seus bancos duros de madeira, podendo ser móveis ou fixos como os dos vagões apelidados de “pela- porcos”. Tudo isso servia para aguçar a curiosidade das crianças “ricas ou metidas a ricas”, que viajavam em vagões sensivelmente diferentes daqueles vagões da 2ª Classe. Naqueles tempos de poucas estradas e poucos proprietários de automóveis, o transporte principal no Nordeste, e creio que em todo o Brasil, era o ferroviário, graças à visão dos políticos da época que, diga-se de passagem, era mais inteligente, aguçada e patriótica do que a visão dos políticos de hoje em dia, infelizmente. Torna-se quase desnecessário dizer quais os benefícios do transporte ferroviário com relação ao rodoviário. A minha primeira viagem de trem foi em 1952. Eu contava oito anos de idade e foi uma das minhas primeiras realizações na vida. Na companhia do meu tio João Gomes Raphael, tomamos o trem que vinha do Recife, por volta das 18 horas, em Sertânia e fomos até o povoado de Irajaí, então distrito de Afogados da Ingazeira, naquela época parada final da via férrea. Fomos fazer uma visita aos meus tios Anunciada e Nozinho Câmara, que se encontravam de férias com os meus primos, na sua Fazenda Coruja. O trem era o famoso “Trem da Serra”, e para mim foi uma festa, apesar da escuridão, naqueles tempos sem a maravilhosa energia de “Paulo Afonso”. Lembro-me do guarda-freios conduzindo a sua lanterna inglesa de carbureto, verificando as rodas dos vagões e da locomotiva, como também os trilhos nas paradas. Também me chamaram a atenção os lampiões de luz fraquinha nas plataformas das estações de Sertânia, Albuquerque Né e Irajaí. Depois dessa primeira experiência, vieram muitas outras viagens que até hoje recordo com saudades. Quem como eu que sempre viajava no “Trem da Serra”, não se lembra das tapiocas com coco, das exóticas maçãs e uvas, laranjas cravo, bagas de jaca, sapotis e dos sanduíches com pedaços de galinha, mariolas e roletes de cana, vendidos nas estações de Pesqueira, Belo Jardim, São Caetano, Caruaru, Bezerros, Gravatá e Vitória? E o que dizer de um estranho e incrível cheiro que sentíamos a partir de Jaboatão, talvez exalado por alguma planta da Zona da Mata e que chamávamos do “cheiro do Recife”. Quando viajei a 1ª vez para o Recife em 1954, com minhas irmãs e minha saudosa mãe Iraci, os vagões ainda eram de madeira e o leito da via férrea que só era revestido de brita de Caruaru até o Recife, levantava muita poeira. Foi na época das comemorações do Tricentenário da Restauração Pernambucana. Houve muitas comemorações e ainda me lembro que o Governador de Pernambuco era um filho de Sertânia – Dr. Etelvino Lins de Albuquerque. Foi nessa inesquecível viagem ao Recife que tive a felicidade de ver o mar pela primeira vez. Foi uma verdadeira epifania. Foi um momento de revelação e comunhão com o Criador. Com o passar do tempo as locomotivas a vapor cederam lugar às de óleo diesel e os antigos vagões foram substituídos por outros de aço e alumínio, mais modernos e confortáveis e toda a linha férrea foi revestida de brita. Até os da 2ª classe melhoraram. Esse trem mais moderno foi denominado de Asa Branca em homenagem à música famosa, a Luís Gonzaga e ao Nordeste. Naqueles tempos, todos viajavam de trem, principalmente as pessoas doentes que iam para centros mais adiantados em busca de tratamento e cura para seus males. Também os rapazes e moças que estudavam nos colégios de Pesqueira, Caruaru e Recife. A viagem em si já era um acontecimento. Quando crianças, tanto eu quanto as minhas irmãs sempre viajávamos com nossa mãe que ia fazer compras para renovar o estoque do seu atelier de bordados e a sua lojinha de produtos de armarinho e sempre ficávamos hospedados na casa do meu avô Manoel Raphael Sobrinho em Tejipió e, anos depois, na casa da tia Carmelita Raphael Leite na Iputinga. Essas viagens eram verdadeiros piqueniques móveis. Mamãe preparava saborosos lanches de galinhas de capoeira com farofa de bolão, sanduíches de queijo e carne de sol, bolos e doces para aquela “épica” travessia do sertão ao cais. Para nós, era uma verdadeira aventura. Tempos depois, já rapaz e estudando no Recife, época em que morei em algumas pensões da Rua do Paissandu e depois na Casa do Estudante de Pernambuco, a exemplo dos muitos colegas do interior, mesmo já havendo ônibus, passei a utilizar muito aquele transporte, que tanto nos marcou, creio que para sempre... Nessas idas para Sertânia, foram inúmeras as vezes que eu e os meus primos Rafael Fernando e Paulo Lins, Dilson Siqueira, Mário Lafayette, Raulzinho e Walter Lafayette e muitos outros colegas da Casa do Estudante, na ânsia de viajar, íamos logo na véspera à noite para o Bar da Central. Lá entre muitas cervejas e o canto de Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Anísio Silva, Silvinho, Roberto Luna, Agostinho dos Santos, Caubi Peixoto, Carlos Alberto, Lindomar Castilho e Núbia Lafayette, entre outros, que saia da radiola de fichas, ficávamos bebericando até a hora da partida do trem. Dependendo do álcool consumido, muitos dormiam até o fim da viagem. Início e fim das férias de junho e de dezembro e festas importantes como a do dia 8 de dezembro – festa de N. S. da Conceição, Natal e Ano Novo, Carnaval, o Aniversário do América Esporte Clube de Sertânia, o Sete de setembro, eleições e outros eventos importantes ou qualquer um feriado longo, tudo era pretexto para viajarmos. Era principalmente nessas ocasiões que dezenas e dezenas de jovens estudantes utilizavam o saudoso Trem da Serra. Já instalados nas poltronas e após a partida do trem, quem quisesse se dirigia logo para o vagão restaurante. Era uma festa. Com cervejas, vodcas e outras bebidas, ou simplesmente refrigerantes, tudo muito bem acompanhado pelos violões e vozes daqueles que cantavam, a farra começava e durava até o término da viagem onze horas depois. Eram grandes farras e alguns somente faziam a viagem pensando na bebedeira. Para outros, bastava que tivessem terminado o namoro ou que tivessem levado um fora de alguma moça. Qualquer coisa era desculpa para encher a cara. Naquelas viagens conhecíamos outros estudantes das cidades por onde o trem passava e que também estudavam fora. Muitos daqueles estudantes, assim como eu, eram sócios da Casa do Estudante de Pernambuco. Além dos rapazes, também moças estudavam internas nos Colégios de Pesqueira, Caruaru e Recife. Das que me chegam à memória posso citar: Minha irmã Cacá e minhas primas Ceci e Gracinha e outras moças de Sertânia como as irmãs Socorro e Onilda Maciel, Telma Pinheiro, Gislaine Veras e Marluce Moraes que estudavam no Colégio das Damas, Socorro Laet, Elisa Freire, Ivani Barbosa e Edileusa Oliveira e creio que outras moças estudavam em colégios como: N. S. do Carmo, São José, Eucarístico e Agnes. Nessas viagens, muitas amizades, namoros e casamentos tiveram início ou término. Crises de ciúmes também, não raro aconteciam. À medida que o trem ia se aproximando do destino, no meu caso, Sertânia, a emoção ia aumentando. A certeza ou incerteza de que uma namorada ou candidata estaria à espera na Estação, fazia o coração bater mais apressado. As moças retiravam os lenços dos cabelos e retocavam a maquilagem, enquanto os marmanjos tentavam pentear os cabelos um tanto duros de poeira. Quando a composição chegava a um local já próximo da cidade e denominado “Apito”, onde a locomotiva dava o sinal de que já estava chegando, todos mal conseguiam controlar a emoção até o desembarque. Era demais. Era uma festa. A Estação repleta de amigos e parentes à espera dos “estudantes de fora”. Abraços, beijos e sorrisos rolavam sem limites. Empoeirados e felizes, transportando nossas bagagens, algumas vezes ajudados pelo empregado da estação com uma carroça de mão, atravessávamos as ruas de nossa cidade, nos dirigindo para nossas casas com a certeza de que a vida, naquela época, era uma maravilha como de fato o era para nós, jovens, saudáveis e amados por nossos familiares ou por nossos amores de juventude.

Um comentário:

  1. Foi ótimo! Pessoas que viveram aquela época e que compartilham suas histórias de viagem pelas estradas de ferro pernambucanas ajudam a nós preservadores ferroviários a remontar aquele tempo. Também é bom para o povo saber como era antes e como é vergonhoso o que o estado faz com a sua história: desvaloriza, maltrata.

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